• Por uma internet mais humana

    Você já deve ter ouvido por aí que a internet transformou escassez em abundância. No entanto, existe uma escassez que a internet não exterminou até hoje – a de boas críticas ao seu modus operandi.

    Uma das minhas últimas leituras tenta preencher essa lacuna – Você não é um aplicativo (248 páginas/Editora Saraiva), de Jaron Lanier, pesquisador, um dos pioneiros da web e da realidade virtual. É um dos livros mais eruditos pertencente à safra atual de autores críticos à internet. E passa bem longe do desabafo raivoso de Culto ao Amador, de Andrew Keen.

    Lanier parte do pressuposto de que a glorificação de mantras – como colaboração online, informação livre e sabedoria das multidões – tem ofuscado a criatividade individual e o livre-arbitrio. Hoje a opinião de um sommelier vale menos do que um serviço de internet sobre vinhos que tenha um potente algoritmo capaz de reunir a opinião de vários anônimos na internet. Em nome de uma suposta “inteligência coletiva”, existe um mito de que quantidade é qualidade.

    Acredita-se demais na sabedoria das multidões e pouco na do indivíduo.

    Uma tecnologia que agrega conteúdo tem, por exemplo, mais destaque do que o indivíduo que produz conteúdo original. Ou seja, o algoritmo, a tecnologia são mais relevantes do que o “ser humano individual”. Segundo Lanier, isso precisa mudar. O indivíduo necessita recuperar o reconhecimento, como o era desde os primórdios da web.

    A partir dessa premissa, o autor foca as críticas no hype das plataformas de redes sociais. Com a autoridade de ser um dos visionários pioneiros da web, Lanier afirma que as atuais redes sociais são impessoais, incentivam as pessoas a criar presenças online padronizadas. Bem diferente do início da web, quando você tinha liberdade criativa para fazer o que quisesse em uma página pessoal. Cada página era de um jeito, o que refletia a natureza própria de cada pessoa.

    O Facebook, ao contrário, padroniza tudo. Todos os perfis têm o mesmo layout e a mesma arquitetura. Quando entramos na rede social, somos obrigados a preencher um cadastro impessoal, que parece feito para um público padrão. Temos que limitar toda a nossa personalidade a algumas linhas de texto.

    Em outras palavras, nos diminuímos como ser humano para entrar nos parâmetros pré-definidos da rede social. Por isso, é uma ilusão achar que as plataformas de redes sociais são um retrato completo e fiel do que somos.

    Neste sentido, Lanier afirma que as plataformas de redes sociais não aumentaram numericamente as nossas amizades. Na realidade, reduziram a noção do que seja amizade. Um exemplo é o fato de existirem pessoas orgulhosas de ter acumulado milhares de amigos em redes sociais. Isso, segundo o pesquisador, não passa de uma pura ilusão e reducionismo do conceito de amizade. Reflexo de como as pessoas se diminuem para poder utilizar um serviço de internet, enquanto que, contrariamente, os serviços de internet que deveriam se adaptar a gente.

    Nessa linha, softwares e serviços de internet, em vez de nos libertar, criaram padrões e nos prenderam a estruturas prontas, que ofuscam a nossa visão e deixam de fora outros caminhos. A noção de arquivo é um exemplo. Nos primórdios da computação, diversos cientistas achavam que a ideia de arquivos não era boa, refletia muito pouco a natureza humana. A expressão humana não vem em blocos ou gavetas.

    No entanto, para poder utilizar os computadores, nos adaptamos à ideia de arquivos, quando o contrário deveria ter acontecido. Segundo Lanier (foto abaixo), o conceito de arquivos se tornou tão totalitário na computação que, hoje em dia, não conseguimos pensar em outro tipo de estrutura.

    Ainda na questão das redes sociais, o autor afirma que o Facebook trabalha com uma das piores coisas que existe na humanidade – pressão social. O newsfeed da rede social opera neste sentido – informa a todos os seus amigos o que você fez, comprou, leu e curtiu. É como se ele dissesse – eu li, comprei e curtiu tal coisa. Você também não vai ler, comprar e curtir? Vai ficar de fora?!

    Sobre o quanto a tecnologia influencia a cultura e vice-versa, Lanier afirma que é um mito acreditar que a adolescência está sumindo – as pessoas pulariam direto da infância para a vida adulta. Na realidade, estaria acontecendo o contrário, a infância e a adolescência estariam sendo prolongadas. Hoje é comum encontrar pessoas na faixa dos 30 anos que ainda estão namorando e não tomaram nenhuma decisão definitiva do que querem fazer da vida. Seria como se elas ainda estivessem em um “útero estendido”.

    A internet foi uma das tecnologias que melhor absorveu essa mudança de comportamento e cultura. Crianças e adolescentes querem atenção. Da mesma forma, hoje, em nossa “adolescência prolongada”, podemos receber atenção suficientes por meio de redes sociais e blogs. Adolescentes e crianças querem evitar a ansiedade da separação. Da mesma forma, tuitamos para manter uma conexão constante e minimizar a noção de casa vazia na hora de dormir (quando li esse parte, lembrei que algumas pessoas ficam penduradas no Twitter até a hora de dormir).

    Segundo Lanier, essa “adolescência prolongada” se reflete em pequenos detalhes na web – nos nomes de startups – MeTickly, Ublibudly -, que, diga-se de passagem, parecem saídos de um jardim de infância, e também nas discussões em blogs e comunidades em redes sociais, nos quais muitas vezes os participantes têm postura de crianças mimadas (somente porque você não me deu atenção, vou escrever um post contra você).

    Essa “adolescência estendida”  se reflete também quando diretores de startups do Vale do Silício se reúnem. Segundo o pesquisador, quando você pensa que eles estão preocupados em gastar seus neurônios para encontrar uma forma de curar o câncer ou o problema de água potável no mundo, descobre que, na verdade, eles estão discutindo como criar um serviço que permita fazer upload de fotos de gatos ou dragões de jogos RPG.

    Lanier não faz juízo de valor quanto a essa mentalidade de “eterna adolescência” potencializada pela web, mas afirma que é preciso termos conhecimento de que ela existe. A infância e a adolescência são as fases mais interessantes da vida, quando aprendemos a usar a imaginação sem restrições, mas também é a época em que deixamos transparecer alguns dos aspectos mais negativos, como o egoísmo.

    Do antepenúltimo capítulo em diante, Lanier perde totalmente o foco do livro, começa a fazer algumas divagações muito pessoais sobre realidade virtual. Porém, o pesquisador deixa transparecer a sua visão transcendental e futurista da realidade virtual. Vivenciar é, para ele, a melhor maneira de aprender algo. E com a realidade virtual, o homem poderia mesmo que artificialmente vivenciar várias coisas, o que proporcionaria a ele uma experiência reveladora, um melhor conhecimento de si mesmo.

    Você não é um aplicativo é um dos poucos livros que mostra o quanto alguns mantras sagrados da web – crowdsourcing, sabedoria das multidões, informação quer ser livre – viraram mainstream, lugar comum. Esses mantras, segundo o pesquisador, estão nos negócios do Vale do Silício, no meio acadêmico e no foco da cobertura da imprensa de tecnologia. A tendência é que esse tipo de pensamento fique igual à noção de arquivos, tão incrustada em nossa sociedade que não teremos capacidade pensar em outros caminhos possíveis.

    Até entendo essa visão de Lanier, uma vez que ele está muito envolvido no Vale do Silício, mas acho que exagera um pouco nesse ponto. Realmente, esse tipo de pensamento virou lugar comum. Basta ir a um seminário sobre internet. A linha de pensamento e filosofia dos palestrantes é, em geral, muito parecida. É possível, no entanto, encontrar pessoas que fogem desses mantras.

    Para mim, Você não é um aplicativo soou como se um dos visionários pioneiros da web chegasse e dissesse – Desculpe, as coisas não saíram conforme o planejado, contudo ainda há chance de reverter. Neste sentido, Lanier não se parece com um luddista. Ele quer que a gente continue utilizando a internet, mas centrado nas pessoas e não nas tecnologias.

    “É um erro segmentar uma rede de pessoas em pedaços tão pequenos que você acaba com uma massa disforme. Então, você começa a se preocupar mais com a abstração da rede (sabedoria das multidões) do que com as pessoas reais que participam dela, apesar de a rede por si só ser totalmente inexpressiva. Só as pessoas têm alguma importância”

    Se existe uma frase que melhor define o livro é -  antes de tudo, são as pessoas, e não as tecnologias, as responsáveis pelos grandes avanços da humanidade.

    Veja também: A Arte de criar e transmitir boatos

    Crédito das fotos: mrdestructicity, jdlasica smlions12 e fensterbme

    Publicado por Tiago Dória, em 19 de julho de 2010 (Segunda-feira). Categoria: livros. Tags: , , , ,

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