• Uma interpretação do fim de Neon Genesis Evangelion

    SUMÁRIO:
    1. Introdução
    2. Um final polêmico
    3. O final “falso” e o final “verdadeiro”
    4. O argumento por trás de Evangelion
    5. Liberdade, Limitação, Existência e Conflito
    6. Conclusão: Unidade e Coerência entre os finais de Evangelion
    7. Sobre o autor e notas

    1. Introdução

    Neon Genesis Evangelion [1] é um anime dirigido por Hideaki Anno que foi ao ar na TV japonesa entre os anos de 1995 e 1996. Composto originalmente por 26 episódios de aproximadamente 23 minutos cada, a série ganhou dois longas em 1997: o primeiro, Death and Rebirth, é um resumo estilizado da série; o segundo, The End of Evangelion, como sugere o nome, conclui a obra.

    Evangelion foi, e ainda é, um trabalho bastante polêmico. Partindo de lugares-comuns típicos do anime, apresenta o expectador a um mundo pós-apocalíptico atormentado ocasionalmente por seres monstruosos dotados de poderes sobrenaturais, cabendo ao personagem principal – Shinji, um garoto aparentemente ordinário e de aspecto frágil – a tarefa de salvar a humanidade. Os meios para executar a tarefa heróica também não poderiam ser mais típicos: o combate físico, pilotando robôs gigantes. Completam a receita meninas bonitas, excêntricas e misteriosas, alguns personagens carismáticos e uma mascote.

    Seu diferencial consiste no modo como esses e outros lugares-comuns foram incorporados em um argumento que transcende a pirotecnia e os aspectos mais aparentes da história, para atingir um nível de refinamento artístico que nos permite a contemplação estética e a um intrincado trabalho de decodificação, sendo necessário, para tanto, conhecer algumas referências clássicas da filosofia, da psicologia e da religião. Um dos principais méritos de Anno foi justamente utilizar características típicas do universo anime, por si só já muito bem aplicadas, capazes de atrair seu público geral [2], como pano de fundo para uma meditação de caráter filosófico, psicológico e místico.

    À medida que a série transcorre, o foco de atenção vai sendo dirigido cada vez mais nessa direção. O argumento torna-se mais e mais abstrato, simbólico. Os eventos apresentados ao expectador vão perdendo sua função “pragmática”, ou seja, passa para o segundo plano o contar da história, a narração dos fatos (ainda que fictícios), a finalidade de informar ao expectador o que está acontecendo. Ao mesmo tempo, sobe ao primeiro plano a função simbólica e a função estética: os eventos apresentados passam a ser veículos para desenvolver e transmitir mensagens de conteúdo teórico-abstrato (função simbólica), por sua vez, de maneira estilizada, artística (função estética). Ou seja, são, antes, símbolos que transmitem reflexões a respeito da subjetividade humana.

    2. Um Final Polêmico

    O fim de Evangelion não só segue essa tendência, mas leva-a ao extremo. Isso gerou muita polêmica, já que, como vimos, a obra também possui elementos que atraíram um público que tinha pouco interesse nesses aspectos, apreciando mais o carisma e as relações pessoais entre os personagens, e com mais interesse no desenlace da intrincada trama. Mais interessado, pois, pelas características mais convencionais dos animes. O fato de a série ter começado ressaltando esses elementos, mas progredido tornando-se cada vez mais estilizada e terminado com um alto grau de abstração (ainda que não tenha abandonado elementos ‘animescos’ tradicionais), frustrou as expectativas daqueles apaixonados pelo universo de Evangelion, mas menos interessados em suas abstrações.

    Nesse registro, o fim da série de TV, composto pelos episódios 25 e 26, é um corte abrupto no desenrolar do enredo que abre mão de narrar o que de fato ocorreu e como tudo acabou (ou seja, o enredo propriamente dito) para discutir exclusivamente o significado da obra e, nesse sentido, concluir a mensagem que os criadores queriam transmitir (o argumento) por meio daquele enredo. O enredo passa a ser um apoio ao argumento, o cenário que serviria como pano de fundo para desenvolvê-lo.

    Contudo, persistia que o que havia sido concluído eram as idéias de Hideaki Anno (o diretor), e não a trama de conspirações que se apresentara até então. O que ocorreu com os personagens principais? O que estava por trás dos mistérios? Ficamos sem essas respostas. O que deixou muitos desnorteados, e mesmo raivosos: lembremos que Evangelion também se destacou nos aspectos ‘animescos’ convencionais. Assim, a sensação de muitos foi de traição: fui apresentando a um mundo mágico, cativante, que não chegou a lugar algum. Assim, em meio aos protestos, um longa, intitulado The End of Evangelion (para não deixar dúvidas…) veio para fornecer um fecho ao enredo, à história, dando um fim à série [3].

    3. O final “falso” e o final “verdadeiro”

    Mas esse imbróglio teve uma conseqüência negativa à compreensão de Evangelion: a separação entre o final da série de TV e o longa-metragem, este entendido como o “verdadeiro” final, o substituto legítimo do final “falso”, “errado”, da série de TV. Essa divisão foi o resultado trágico – mas esperado – da própria composição da série; foi se aprofundando, progressivamente, à medida que Evangelion tornava-se cada vez menos um anime convencional e cada vez mais uma alegoria filosófica, “traindo” seu público “original”, ou seja, o público que havia sido atraído pelos méritos ‘animescos’, mais presentes na primeira parte da série.

    Achamos isso uma grande besteira; uma besteira que só poderia ser o resultado de um grande mal-entendido. Logicamente, o fato de Evangelion ter sido um anime de forte apelo comercial, direcionado ao grande público, ao mesmo tempo em que ambicionou ser uma espécie de dissertação multidisciplinar de filosofia e psicologia, faz dele uma obra arriscada, que se lança ao risco de ser mal-compreendida, caminhando portanto sobre uma linha muito tênue entre o grande sucesso e o grande fracasso. Mas acreditamos que Evangelion conseguiu desenvolver com grande competência as idéias e emoções que queria transmitir. E principalmente: achamos que tudo isso, esses aspectos abstratos, “intelectuais”, não são contrários à dimensão propriamente ‘animesca’ de Evangelion, pelo contrário, as duas coisas se complementam. Essa é nossa tese. Pretendemos demonstrá-la por meio de uma comparação entre os finais de Evangelion, mostrando que eles são compatíveis. E, assim, como os aspectos ‘animescos’ são compatíveis com os “abstratos” (teóricos e estéticos).

    Nesse sentido, End of Evangelion claramente complementa o fim da série de TV. As suas coisas são partes complementares de um mesmo argumento. Isso não é claro porque o que vemos em End of Evangelion é o que ocorre fora da mente do personagem principal, Shinji (também poderíamos dizer fora de seu “AT Field”…). Trata-se, pois, dos eventos literais, do enredo. O que vemos no fim da série de TV é o que ocorre dentro de sua mente (seu “AT Field”). Mas o argumento de ambos é o mesmo. Ocorre, apenas, que vemos esse argumento de ângulos diferentes (interior e exterior a Shinji). Nada mais adequado para o estoque de influências culturais que estão na retaguarda de Evangelion.

    Qual seria esse argumento? Vamos tentar apresentá-lo resumidamente.

    4. O argumento por trás de Evangelion

    Evangelion trata dos problemas dos relacionamentos humanos, do sentido da existência, da formação do ego e da individualidade. Ele busca responder a algumas questões filosóficas clássicas, que atormentam os seres humanos: por que vivemos?, o que é a felicidade? E, até mesmo, como compreendemos o mundo em que vivemos? [4]

    Uma seqüência do fim da série de TV é especialmente ilustrativa. Vamos utilizá-la como exemplo. Ela começa mostrando uma tela completamente branca. De repente, traçam-se algumas linhas. A partir dessas linhas, coisas começam a ganhar forma. Progressivamente, elas vão se distinguindo entre si. Adicionam-se cores, e todo vai se tornando cada vez mais complexo. Ao mesmo tempo, enquanto tudo isso transcorre, a voz da narração fala de “liberdade”, de “visões de mundo”, de “sofrimento”, de relações humanas. O que isso quer dizer?

    Em síntese, para que as coisas existam, elas precisam se distinguir entre si. Inclusive nós, os seres humanos. Ao mesmo tempo, quanto mais nos distinguimos, mais adquirimos individualidade. Quanto mais individualidade, mais temos oportunidade de desenvolver emoções próprias. E, à medida que tomamos consciência de nossa própria existência, torna-se necessário dar algum sentido para ela. E as pessoas precisam relacionar-se para construir esse sentido, ou seja, precisam viver juntas.

    5. Liberdade, Limitação, Existência e Conflito

    Essa idéia se desenvolve da seguinte forma. O espaço vazio, mostrado no início, representa o estado de liberdade total. Mas nada existe nesse estado. Para que tudo seja possível, é preciso que não exista nada, em particular. Para algo existir, é preciso que se estabeleça uma distinção fundamental. Adiciona-se ao espaço vazio, assim, uma consciência – no caso, do personagem principal, Shinji. Mas vejamos: para Shinji existir, foi necessário que ele se diferenciasse do espaço à sua volta. Foi preciso que se estabelecesse uma fronteira, no caso, física, entre ambos. Para que algo, para que Shinji existisse, foi necessário criar-se alguma limitação, uma fronteira, que diferenciasse esse “algo” de todo o resto. A primeira limitação, a mais fundamental, é a própria separação entre nós e o universo que nos cerca.

    A essa altura, o universo já sofreu alguma limitação. Mas Shinji ainda está livre. Neste momento, somente Shinji existe. Nada existe além dele. Ao contrário do resto do universo, que é uma massa branca, Shinji é formado por traços. Ele é livre… exatamente porque não há nada com que se distinguir. Ele é livre, porque não há nada ao seu redor.

    Traça-se então uma reta, e daí surge um plano, um espaço. Desse espaço passa então a existir “em cima” e “em baixo”. Agora, Shinji pode prender-se a uma superfície, e sobre nela caminhar. Estabelecem-se sentidos. Passa a existir, portanto, mais coisas: direções. Contudo, Shinji agora está preso ao plano. Sua liberdade foi limitada.

    A seguir, adicionam-se mais coisas ao universo. Além do plano e de Shinji, vão aparecendo outras coisas, outros seres, objetos. Shinji é diferente de todos eles. Ele é diferente porque ele está separado de todo o resto, porque há algum limite entre ele e o resto. E exatamente por isso, agora, Shinji pode se relacionar com todos eles.

    Mas quanto mais coisas existem, mais Shinji torna-se limitado.

    Há, pois, uma relação entre existir, diferenciar-se e ser limitado. Para existir, as coisas, inclusive nós, precisam se diferenciar. Mas com isso também nos limitamos, ou seja, nossa liberdade absoluta diminui.

    Mas há ainda um agravante: ao contrário das coisas inanimadas, nós, seres humanos, temos consciência de nossa existência e de nossa individualidade: sabemos que existimos e que somos diferentes de tudo o que nos cerca.  E isso, a consciência, traz consigo uma necessidade insaciável de buscar por um sentido de vida, um significado para a vida.

    Os seres humanos então olham para tudo o que é diferente deles, para tudo o que os cerca, e passam a dar nomes para essas coisas. As coisas passam a ter, além de nomes, valores. As coisas passam a ser julgadas, passam a ter características e qualidades. Assim, nomeando e valorizando tudo à sua volta, os seres humanos vão conferindo sentido à realidade – e às suas vidas. Eles incorporam, em suas mentes, o sentido que dão ao mundo exterior. E o principal: eles precisam fazer isso juntos. Só vivendo em sociedade, relacionando-se, comunicando-se, entre si, podem os seres humanos produzir o sentido à existência sem o qual não sobrevivem.

    Assim, os seres humanos também se diferenciam entre si. Quanto mais se distinguem, mais eles dependem uns dos outros. E isso os limita. Cada um estabelece uma fronteira entre si e os outros, ao mesmo tempo em que são, todos, interdependentes. Daí surgem os conflitos. A idéia é que existir é ser limitado. É um paradoxo. Precisamos ser limitados, pela realidade, pelos outros, para existirmos, para sermos quem somos e para termos um sentido para nossa existência.

    6. Conclusão: Unidade e Coerência entre os finais de Evangelion

    Seguindo essa idéia, em The End of Evangelion as fronteiras entre todos os seres humanos se diluem. Os “AT Fields” (que são metáforas para as fronteiras entre as consciências de cada um) se fundem, dando origem a uma massa amorfa de liberdade total. Mas, nesse estado de liberdade total, ninguém se distingue de ninguém, e portanto ninguém existe. Não há emoções, não há significado, ou cultura. Para que não haja sofrimento, é preciso que as pessoas não se distingam e não se relacionem. Para que não exista conflito, é preciso que não existam indivíduos.

    Assim, para sentir algo, para viver, para ser algo, Shinji escolhe, em End of Evangelion, sair do estado de liberdade total, voltando a distinguir-se dos demais e trazendo-os de volta à Terra. Ele buscará a felicidade em meio a suas limitações, porque para viver e para ser feliz é preciso ser limitado de alguma forma. A própria possibilidade de felicidade pressupõe a existência das condições que produzem o sofrimento (diferenciação e individualidade). Ele prefere correr o risco.

    Ele entende isso ao final do movie e dos capítulos da série de TV. Neste momento, nós, os expectadores, somos transportados para dentro da mente do protagonista, e vemos o que ocorre dentro dela. Lá, vemos, supostamente, o sentido da existência humana. O que vemos no longa-metragem é a realização objetiva do que se passa dentro desse universo interior, é o que ocorre do lado de “fora”, no mundo externo. Neste momento, nós, os expectadores, temos um ponto de vista onipotente, vemos tudo o que ocorre objetivamente no mundo. Os dois, contudo, buscam responder às mesmas questões e a nos dizer as mesmas coisas. Ambos nos convidam, pois, a mergulhar numa odisséia em busca do sentido de nossas vidas.

    7. Sobre o autor deste artigo:

    Fernando Baptista Leite (ferngutz@gmail.com) é Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná e expectador de animação japonesa desde 1997.

    [1] Shin Seiki Evangelion, no título original. [voltar ao texto]

    [2] No Brasil, otakus. Lembra-se, contudo, que a palavra adquire sentido pejorativo no Japão, sugerindo um comportamento obsessivo em relação a algum hobby. O culto ao anime e mangá é um dos principais tipos de hobby otaku no Japão. [voltar ao texto]

    [3] Que, aliás, apesar de muito esperado, não deixou de desagradar a muitos: em primeiro lugar, o grau de abstração permaneceu alto e, em segundo lugar, permaneceu bastante polêmico. [voltar ao texto]

    [4] As principais referências que deram corpo à dimensão simbólica de Evangelion são sem dúvida o trabalho do psicólogo alemão Sigmund Freud, a psicologia de Jung, a filosofia de Arthur Schoppenhauer, o existencialismo (Heidegger, em especial). [voltar ao texto]

    Caracas, show de bola a análise!!!

    Posted via web from Léo Ferreira

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